agosto de 2020

O QUE TIRA O FÔLEGO E O QUE RESTAURA – UMA CONVERSA COM DOROTHÉE MUNYANEZA

Luciane Ramos Silva

 

 

 

 

 

 

tradução luciane ramos-silva
imagens christophe raynaud, richard schoeder e bruce clarke
capa Dorothée Munyaneza, em cena do espetáculo Unwanted, em apresentação realizada no 71° Festival D’Avignon, na França.

 

 

 

 

 

 

 

 

O tempo atual de profunda angústia e dúvidas sobre os caminhos da humanidade, exige-nos olhar para histórias e experiências que tragam, quiçá, um pouco de alento. Não é de hoje que homens na liderança de Estados e organizações definem rumos de destruição à contrapelo da natureza, do bom senso ou do bem estar coletivo. Se as imagens de horror parecem perseguir a história da humanidade, a arte como forma de leitura de mundo pulsante e transbordadora, reforça nossa consciência de que é preciso gerar belezas e curar feridas.

 

A multi-artista Dorothée Munyaneza, nascida em Kigali, capital de Ruanda, e que escapou do genocídio ocorrido naquele país em 1994, exilando-se na Inglaterra com sua família, desenvolve um  fazer artístico que não se furta de confrontar a realidade, transmutando dramas contemporâneos.

 

Suas duas obras mais recentes – Sábado descontraído e Indesejada – foram apresentadas no Brasil em importantes festivais: FIT (Festival Internacional de Teatro), em Belo Horizonte, em 2018; Festival Cena Brasil, no Rio de Janeiro; e MIT (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo), em  2020, oferecendo ao público brasileiro ideias sobre o massacre do povo tutsi em Ruanda, a partir da discussão do estupro como arma de guerra e da experiência de mulheres e crianças sobreviventes. Trata-se de pensar não só Ruanda, mas o mundo.

 

 

 

Dorothée Munyaneza

 

 

 

O canto e a dança de Dorothée revolvem memórias de tristeza e dor mas também celebram a vida e convocam-nos para a transformação. Sua performance faz do corpo uma espécie de arquivo histórico e nos aproxima de dilemas que não são restritos a um povo ou país, mas são humanos. Das imagens vívidas que guardo da peça intitulada  “Indesejada”,  lembro de um grande mural, aplicado sobre um totem de metal,  disposto na lateral do palco e em cuja superfície rugosa estava estampada a figura de uma mulher em tons de azul e laranja. No painel havia a inscrição: “Sem desculpa”, e a face da mulher parecia grave. Dorothée avançava no palco esbarrando e rasurando o mural com seu corpo, rasgando  em pedaços aquela imagem. Talvez estivesse ali a convocação para re-inscrever aquelas memórias traçadas na carne tão viva. Talvez.

 

Revisitando a história de reconstrução de Ruanda*, na esfera estatal e na sociedade civil, vemos que há um exercício coletivo para aprender com o passado, reconciliar e reconstruir identidades em um exame profundo sobre o que é fazer justiça. Olhar para aquela história também exige lembrar o quanto a herança colonial do passado e o silêncio da comunidade internacional durante o genocídio são vetores cruciais para a percepção crítica sobre a brutalidade ocorrida em 1994.

 

Neste quase fim de mundo reencontrei Dorothée nos pulsos elétricos da internet. Durante a vida insólita da pandemia, ela no sul da França, onde vive, e eu em São Paulo, para além de parabólicas, fibras óticas, satélites e modens, nossa conexão foi movida pelo desejo de comunicação em solidariedade – Lições das nossas antigas e maneiras de  fazer surgir novos futuros.

 

 

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///entrevista

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LUCIANE RAMOS-SILVA: Como seres humanos, nunca somos apenas uma coisa e nossa maneira de existir está, muitas vezes, mais relacionada a caminhos que percorremos do que a raízes** que temos.  Viajamos, encontramos e confrontamos realidades, estamos em constante transformação. Você acredita que devemos nos envolver com nossas fundações, além do nosso compromisso com a liberdade de ser o que queremos ser?

DOROTHÉE MUNYANEZA: De fato, muitas jornadas e encontros internos e externos compreendem quem somos e quem estamos nos tornando como seres humanos. Essas jornadas e encontros mudam-nos de várias maneiras.

 

Eu vejo a vida como uma jornada contínua, uma jornada que é sobre raízes e estradas, sejam as estradas que nos levam as nossas raízes ou as raízes que nos levam a várias estradas. De qualquer forma, torna-se necessário abrir nossas mentes, à medida que nossos horizontes se expandem. Ser capaz de se mover livremente  (o que não é o caso de muitos cidadãos deste mundo) e conhecer outros seres humanos (e todos os seres vivos), nos dá novas perspectivas e força. Isso cria uma proximidade que muitas vezes as ideias xenófobas e o medo do outro tendem a desencorajar. Reconhecer a nós mesmos em outros seres humanos (e respeitar todas as coisas vivas e agir responsavelmente com as não vivas) nos enriquece imensamente e cria espaço para nos envolvermos de maneira significativa e poderosa.

 

 

LRS: Eu nunca estive em Ruanda, mas aprecio a delicadeza das danças que vi em vídeos. Essas danças delicadas e as infinitas colinas marcam minha imaginação sobre o país. Isso é algo que ressoa em suas memórias?

DM: Passei minha infância em Ruanda, muitas vezes referida como o país das mil colinas. Algumas das minhas lembranças mais tristes e mais brilhantes vêm dessas colinas. Eu nunca me canso de admirar as paisagens magníficas, as cores que vão dos campos verdejantes à terra ocre e os muitos tons de azul no céu. Toda vez que vou para Ruanda, tudo isso me deixa  sem fôlego. Sobre essas colinas e em algumas cabanas para gado, você pode ver inyambo, as vacas tradicionais com belos chifres longos, movendo-se com graça enquanto suas cabeças balançam suavemente. É esse movimento específico da cabeça que nossos braços e cabeças imitam enquanto dançamos. As colinas e os movimentos com os quais dançamos fazem parte da construção de nossa herança. Eu carrego a terra de meus ancestrais, a poesia e metáfora de ikinyarwanda, minha língua materna, os ritmos da dança e da música, como uma memória viva que constitui meu núcleo.

 

 

LRS: Vivemos uma época em que o planeta passa por diversos  tipos de desastres sociais. A maioria deles se relaciona  à negação da diferença. Como as experiências de misoginia, racismo e xenofobia afetaram sua jornada artística?

DM: Sou ruandesa e tenho dupla cidadania, a outra  é britânica. Passei mais anos na Europa (particularmente em Londres, Paris e Marselha) do que em Ruanda e, mesmo assim, me coloco em ikinyarwanda, a língua do povo de Ruanda. Suas metáforas e poesia me ancoram. Afiei minha mente, estudei e aprendi a dominar as línguas do Ocidente dominante (particularmente francês, inglês e atualmente retornando ao alemão e tendendo ao português com atenção assídua), por prazer e como uma ferramenta para defender ideias que prezo, particularmente às vezes minha humanidade é negada por e através de indivíduos, ideias e declarações racistas, misóginas e xenófobas.

 

Eu conheci pessoas de todas as esferas da vida e de todo o mundo, que tiveram um belo e significativo impacto na minha vida e na minha jornada artística.

 

“eu crio um trabalho que trata  de colocar em foco as injustiças, revelar as cicatrizes e reparar o círculo quebrado. Meu trabalho busca espaços onde a beleza e a resiliência fincam terreno e celebram essa beleza e essa resiliência”.

Como um ser humano e criativo, procuro relacionar o íntimo com o histórico, o indivíduo com o global. Crio a partir das infraestruturas do íntimo e trabalho em direção àquilo que nos liga e nos liga aos outros.

 

Não só experimentei essas violências como pessoa, mas também (e ainda mais) como membro de uma comunidade maior de povos negros e marrons em todo o mundo, e isso teve um impacto profundo em como quero abordar essas experiências horríveis em meu trabalho artístico. Os momentos em que me sinto atacada por comentários racistas, misóginos e xenófobos porque prejudicam minha comunidade, sei que não posso ficar calada, mas tenho que criar um trabalho que lide com esses males sem vergonha, seja a colonização, a escravidão, a violência de gênero, ou os erros cometidos àqueles considerados como Outros. O que quer que machuque a comunidade,  machuca o indivíduo dentro dessa comunidade (e vice-versa) e é por isso que não posso criar um trabalho que não se manifeste contra esses erros.

 

Dito isto, também quero que meu trabalho seja uma celebração daqueles povos e comunidades que há muito tem sido feridos. Porque somos dignos de celebração. Sempre que minha/nossa humanidade é negada por essas violências, penso e encontro maneiras de conquistar através da lembrança do meu/nosso valor. Às vezes é cansativo, mas o processo criativo e a comunidade restauram a força necessária para seguir em frente.

 

 

LRS: Você esteve no Brasil apresentando dois de seus trabalhos – Samedi Détente e Unwanted . Como foi sua experiência no país? Existe alguma coisa na realidade brasileira que tenha te movido ou levantado questões para você?

DM: Eu tive a oportunidade de apresentar meu trabalho no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo. Foi uma experiência muito poderosa e emocionante, porque tive a oportunidade de conhecer colegas artistas do Brasil e pessoas (principalmente mulheres) de comunidades negras, marrons e indígenas que abriram meus olhos para sua história e vida cotidiana, bem como para suas relações sociais, compromissos políticos que ressoaram fortemente em mim e me fizeram perceber o quão intimamente nossas histórias estavam ligadas.

 

Samedi Détente, que é uma peça autobiográfica que fala sobre o genocídio contra os tutsi em Ruanda em 1994, emocionou o público brasileiro que frequentemente me procurava (principalmente os negros, marrons e indígenas) e dizia que parecia que minha história estava falando sobre eles mesmos e sobre a violência e extermínio perpetrados contra eles. Eles puderam se relacionar e isso realmente me tocou e me fez querer entender ainda mais a realidade, passada e presente do Brasil.

 

Unwanted  fala sobre o estupro contra mulheres e meninas como arma de destruição em massa em tempos de genocídio e guerra. Esta peça também ressoou muito naqueles que vieram testemunhá-la. Após as apresentações, muitas mulheres compartilharam seus próprios testemunhos comigo e confirmaram o que eu já sabia, o estupro é uma arma universal usada contra os corpos das mulheres em todo o mundo, e contra a qual devemos lutar e quebrar o silêncio ao seu redor. Unwanted  faz parte dessa luta.

 

Samedi Détente e Unwanted  são um testemunho de vida e resiliência e acredito que os brasileiros (especialmente os negros, marrons*** e indígenas) podem se relacionar com isso, porque os carregam profundamente, apesar da realidade que frequentemente lhes nega vida.

 

 

 

Dorothée durante ensaio do espetáculo Unwanted, em Toulon.

 

 

 

LRS: Desde 2018 Ruanda é um dos cinco principais países em igualdade de gênero. Como você se sente sendo uma mulher nascida em Ruanda?

DM: Claro que estou muito orgulhosa. Tenho orgulho do meu povo e do exemplo que eles estão dando para muitos outros países ao redor do mundo. As mulheres sempre ocuparam uma parte central da sociedade ruandesa, sempre trabalharam duro, criando seus filhos, trabalhando nos campos, iniciando e administrando negócios. Elas são as guardiãs do conhecimento, transmitem costumes morais e sociais e agora ocupam posições de poder na esfera política. As meninas são incentivadas a prosseguir seus estudos e acreditar em seu valor. Além disso, a herança familiar agora é dividida igualmente entre homens e mulheres, o que anteriormente não era o caso. Então, sim, tenho orgulho da busca pelo meu país pela igualdade de gênero.

 

 

LRS: A ideia de justiça é importante em seu trabalho?

DM: Absolutamente. Justiça é importante. Mas como não posso fingir que sou juíza,  eu crio um trabalho que trata  de colocar em foco as injustiças, revelar as cicatrizes e reparar o círculo quebrado. Meu trabalho busca espaços onde a beleza e a resiliência fincam terreno e celebram essa beleza e essa resiliência.

 

 

LRS: Tenho lido os livros de Sholastique Mukasonga. Isso me fez pensar nas mulheres mais velhas e em seu papel na transformação e cura. Você poderia comentar sobre isso?

DM: Minhas avós materna e paterna me curaram de tantas maneiras que não posso expressar, através do toque curativo (a mãe de meu pai era parteira e curandeira, ela usava ervas para tratar aqueles que a procuravam). Elas me restauraram com suas músicas, suas danças e as histórias que contavam. Tradicionalmente, somos ensinadas a respeitar sempre os mais velhos, sejam homens ou mulheres, porque portam muito conhecimento. E quando criança, fui criada dessa maneira. Tenho lembranças muito vívidas de minhas avós e de minha bisavó materna que, direta ou indiretamente, me ensinaram (e a meus irmãos e colegas) sobre as plantas, o passado, a sobrevivência, a alegria e sobre como apreciar o presente e ter fé no futuro. Passar um tempo na presença delas sempre foi um prazer indescritível e um momento cheio de lições ao longo da vida. Eles deixaram uma marca indelével em como eu me defino e me coloco no mundo. De fato, as mulheres mais velhas desempenham um papel primordial na nossa transformação e cura.

 

 

 

 Dorothée

 

 

 

LRS: O trabalho de Mukasonga também nos leva a pensar no Direito à memória. Temos um dançarino mais velho aqui no Brasil, Clyde Morgan, que, certa vez perguntado “por que dançar?”, ele disse: “Dançar para lembrar ou para não esquecer”. Você tem algum comentário sobre essa ideia?

DM: Recentemente eu estava conversando com meu pai sobre memória. E ele se referia à memória como um ato intencional, que mantém vivo aquele ou aqueles que estamos lembrando. E acredito que a resposta de Clyde Morgan a por que dançamos é perfeita. Dançar é lembrar, dançar é estar vivo, dançar é manter algo ou alguém vivo. Quando dançamos, tocamos em espaços de poder, memória, feridas, conversas, histórias e histórias. Quando dançamos, nos reunimos no ato da lembrança e da resistência. Quando dançamos, recusamos o esquecimento.

 

 

LRS: Dado que estamos vivendo um tempo de injustiças e violência indescritíveis, mas também de iniciativas de reinvenção e construção de novos mundos, o que você gostaria de acrescentar à nossa conversa? pensando no público que lerá esta entrevista?

DM: De fato, estamos vivendo tempos difíceis, nos quais muitas atrocidades são cometidas, particularmente em relação às comunidades negras e não brancas e em relação a gênero, religião, política e muitas outras minorias ao redor do mundo. No entanto, ainda estão surgindo vozes que se manifestam contra essas injustiças e articulam outras narrativas, criando espaço para as pessoas se sentirem inteiras, cuidadas e parte de um movimento importante. Estou ciente da enorme tarefa em mãos, a luta é real, mas me recuso a desistir. Não podemos nos dar ao luxo de desistir. Há uma tapeçaria de curandeiros, pensadores, criativos, voluntários, ativistas, pessoas de diferentes estratos sociais (re)construindo pontes, criando caminhos em outros lugares, mesmo através dos escombros, desmantelando o sistema, todos tecendo uma parte dessa tapeçaria para construir novos mundos além das fronteiras, e eu, humildemente, mas sinceramente, estou tecendo minha parte. Gostaria de citar as palavras de Zora Santos: “Não apenas um momento, mas um movimento”.

 

Obrigada, Zora Santos, por suas palavras de sabedoria que me acompanham e me revigoram, diariamente. Permita-me terminar com esses versos do meu poema para Mailles, minha próxima peça que reúne mulheres africanas e afrodescendentes na diáspora (estreia em outubro de 2020):

 

MÃOS JOVENS NOS
CABELOS GRISALHOS DE ZORA


Cheia de azul

Está viva
Procurando
A liberdade interior
Viver é um direito
Revelando tudo
Em um mundo pós-poder mais justo
Cruzando sensos
Ressurgir
Formas antigas.
Novas todas as manhãs.
Estamos em andamento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

notas de rodapé///

 

* Sobre o Genocídio em Ruanda: Durante 100 dias, de abril a julho de 1994, quase um milhão de pessoas foram massacradas – a maioria da etnia tutsi. Entre suas feridas, o genocídio deixou 5 mil crianças órfãs e 400 mil viúvas. Além dos estupros cruéis que perfazem a memória do massacre, no período , mais de 2 milhões de pessoas fugiram para os países vizinhos.

 

** O original em inglês da primeira pergunta oferecida a Dorothée, traz os termos routes (rotas) e roots (raízes), fazendo referência a expressão do pensador Stuart Hall. Na frase em inglês o trocadilho funciona pela semelhança entre as palavras. Em português o mesmo não ocorre.

 

*** Para a tradução do termo brown, optei por não usar a palavra “pardo”, muito embora o IBGE traga esta categoria dentro dos termos de classificação racial oficial. O termo “pardo” está relacionado com as investidas de branqueamento e de proliferação do ideário da democracia racial no país e, se analisado em profundidade, é uma forma de escamotear e, no limite, negar a negritude.  Genericamente a designação funciona, já que comunica a ideia de “alguma mistura racial” ( lembremos que pessoas de ascendência indígena são, muitas vezes, identificadas como pardas no cotidiano), mas a construção social do termo no Brasil traz complexidades.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Luciane Ramos Silva

Luciane Ramos Silva é antropóloga, artista da dança e mobilizadora cultural. Doutora em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Atua nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.