março de 2011
ENTRE A GARGANTA E A CANETA
Redação
fotos MANDELACREW
Na entrada, arroz branco, carne apimentada, mandioca cozida, salada de tomate e suco de limão. Na saída, um delicioso licor de tangerina. Foi assim, como bom anfitrião, que Allan Santos da Rosa nos recebeu em sua casa, no Taboão da Serra. Nas paredes da cozinha e da sala, desenhos do filho Daruê, de 4 anos e alguns cartazes das centenas de eventos dos quais já participou.
Educador, capoeirista, militante, poeta, produtor, mestre? Muito mais. Allan da Rosa, que tem a poesia no nome, a prosa na ponta da língua e a literatura correndo pelas veias é, na verdade, um misto de empreendedor literário e intelectual periférico.
A palavra (nas suas mais variadas formas), o espírito realizador e o amor pela transformação através do conhecimento são suas principais armas.
Graduado em História e mestre em Cultura e Educação, ambos pela Universidade de São Paulo, de uns tempos pra cá, o camaleônico poeta vem se dedicando à organização de cursos independentes de cultura e arte negra nas periferias paulistanas e na formação de professores para ensino de cultura de matriz afro.
Allan, que já foi feirante, office-boy, operário em indústria plástica, vendedor de incensos, livros, churros, seguros e jazigos de cemitério, é hoje, aos 35 anos, um dos mais atuantes e sagazes intelectuais da periferia paulistana.
Não há um sarau ou uma roda literária nas quebradas de São Paulo onde o seu nome não seja conhecido, reconhecido e respeitado (o mesmo vem se dando em muitas universidades também).
Se alguma coisa mudou nas beiradas da cidade na última década, período que passou a viver por e para ela? Tudo e nada. “O que são dez anos na história? Dez minutos duram mais do que dez anos”.
***
QUEBRADA
Jabaquara! Lugar histórico. Tenho o maior orgulho de ter nascido lá. Não sei se você sabe mas Jabaquara significa lugar de nego fujão. Lugar bom pra se esconder. Jaba = lugar/ refúgio e quara = nego fujão. Sinto saudades de lá, muita.
A DESCOBERTA DA ESCRITA
Comecei a escrever fazendo a biografia de jogadores de futebol de botão. Pegava o mapa-múndi e via Alemanha, por exemplo. Daí procurava o nome de um município de lá, tipo Nuremberg. Depois ia no Peru e fazia a mesmo. E pegava a cidade de Cuzco. Aí fazia uma partida entre Nuremberg e Cuzco. E inventava uma história pro jogo. Era bem moleque quando fazia isso. Acho que a primeira vez que escrevi foi aí.
FAMÍLIA
Meu pai vivia preso e quando saía deixava um monte de revista pra eu ler. Muito livro de bang-bang, gibi, coisas da Agatha Christie, isso com 13, 14 anos.
Assim como um monte de cadeiero da década de 80, meu pai, quando estava na rua, montava um táxi. E eu me lembro muito das histórias de livros que deixavam no banco do carro dele.
Meu pai era da umbanda e minha mãe, católica. Ele, um preto, cheio de referências negativas e ela, uma mulher branca, caxias, lutadora. Não sei como ela agüentou criar eu e meu irmão trabalhando em dois empregos. Meu irmão puxou minha mãe em tudo. E teve um tempo que eu estava puxando meu pai em tudo.
ANOS 90
Na década de 90, eu fazia fanzine e teatro de rua. Rodava o Brasil distribuindo fanzines com uns versos meus. Eu já tinha nessa época um lance com a poesia. Mas não havia essa parada que eu acho que instiga as pessoas a criar mais, que é a demanda de um público pra curtir e ler junto. Não só ouvir.
A LEITURA
A leitura abriu meus horizontes. Não acho que ela me salvou, não gosto desse papo não.
ANCESTRALIDADE
A ancestralidade está no jeito como a gente cozinha, no modo como arrumamos a casa, como levamos os filhos pra escola, como vestimos, como dormimos, enfim, no nosso cotidiano. Acho que isso a gente não pode perder. Se não, vamos rimar ancestralidade com religiosidade sempre.
EVENTISMO
Lembro que em Americanópolis (região do Jabaquara) nós ficávamos na rua fazendo de tudo, de bom e de ruim, e falando: ‘porra, hoje podia ter um filme’. E não tinha nada. Há dez anos não tinha nada na quebrada. E hoje tem, mas engana. A gente não pode perder o foco, tem que manter a reflexão, se não vira eventismo e onde vai chegar? Meu medo é que de repente a gente entre em uma máquina giratória, de evento, evento, evento. Tudo vazio e oco, fogos de artifício.
O lance é ganhar força com isso (realização de eventos). Não ser um lance de auto-ajuda ou salvação, saca!?. Mas a gente se enriquecer como pessoa. Fazermos essas reuniões pra gente se socializar de novo. E pra que? Pra voltar a ter dignidade. Porque o tempo inteiro a gente é tirado.
Acho que evento é massa, magnetiza, atrativa, as pessoas desfrutam, mas… e depois, e antes, e durante mesmo?
A FORÇA DA LITERATURA MARGINAL
Ainda sobre a literatura, acho que devemos nos dedicar mais ao texto. Fazer um movimento com reflexão (você vê que eu não utilizo a palavra crítica, que eu acho muito entojada). Acho que hoje temos essa possibilidade, o que de certa forma já está acontecendo. A cara é produzirmos cada vez mais encontros, debates e reflexões. Por que o capital graúdo, os bancos, a ONU, a NASA (sic) estão interessadas na gente? Por conta de nossos lindos olhos vermelhos? Não cara, porque pra virar produto é um dois.
LITERATURA DE LÍNGUA
Acho que este movimento de literatura periférica (que por sinal eu acho bom este nome, já que foi a gente que deu, não acho que é rótulo) é uma onda que abraça muita gente diferente. Quando nos reconhecemos pela primeira vez, descobrimos que tínhamos um bocado de irmãos gêmeos espalhados por aí. Principalmente quando olhamos a história do cordel, da literatura africana nos países de língua portuguesa, que eu acho uma puta referência (Angola, Moçambique).
Quando eu conheci os textos de um pessoal de Cabo Verde, Moçambique, mano, eu pirei no que os caras estavam fazendo. Vocabulário, estilo, tema. Foi o maior pirepaque da minha vida de leitor quando eu vi literatura africana escrita em português.
Existe uma criatividade na literatura africana hoje, na sul-americana também (gosto muito de ler, muito mais do que escrever), que é muito louca.
Então eu estou procurando apresentar alguns escritores africanos nas minhas atividades, mas tem essa treta de não ter tradução. É inacreditável não termos material traduzido de um cara chamado Wole Soyinka, nigeriano, Nobel de Literatura, que trabalha muito o mítico e o histórico. E este é só um exemplo.
EDUCAÇÃO
O que é essa escola hoje? Ela nasce na revolução industrial inglesa, um depósito de crianças para os operários irem trabalhar 14 horas por dia. Essa divisão de disciplinas também vem, novamente, de um movimento de pensamento europeu que desintegra as coisas. E a gente tem um monte de outras formas de transmissão e geração de conhecimento.
Não podemos achar que a educação é a escola. Agora, o que a escola tem de diferente é que ela possibilita regularidade. É um centro cultural. Escola é um labirinto doce, você se perde e fica, ou pelo menos era pra ser.
Se a gente deixar também para a escola a missão de educar, nem ela, e nem uma escola dos sonhos vai conseguir fazer isso. Acho que é muito mais legal termos nosso próprio desenvolvimento pedagógico pra gente poder colorir os temas e, principalmente, a forma.
Acho que a gente é muito pouco corpo na escola também. Quando eu digo o corpo não é que temos que ficar gingando, dançando toda a hora. Se tiver fundamento tudo bem. Mas o corpo cheira, come, veste, levanta. Nosso imaginário reverbera o que ele faz. Quando eu levanto da cama eu já tô aprendendo o que é ascensão social, quando eu subo uma ladeira já tô aprendendo o que é subir. É por causa do corpo que eu aprendo isso.
CONQUISTAS
Há dez anos, a gente tinha que falar e, de certo modo, ainda tem que falar, de como estamos de escanteio em algumas paisagens essenciais. Tem uns jardins que vão levando a nação pra frente, mas que a gente nunca esteve representado. Por outro lado também conquistamos muita coisa. Estamos na PUC, USP, no Mackenzie, na Pinacoteca, no Centro Cultural Vergueiro, no Museu Afro Brasil, trabalhando, oficinando, falando. Mas não podemos falar mais o que falávamos há dez anos. Temos muito mais a anunciar do que a denunciar. Se for só pra denunciar tem o Datena aí todo dia.
TABOÃO DA SERRA
Vim pra cá por volta de 1999, por causa da capoeira e da poesia. A Cooperifa nasceu aqui. Precisava de um lugar pra treinar (capoeira), tinha treinado com o mestre Pinguim, na USP, e tive que sair pois estava buscando uma filosofia de capoeira angola. E aqui tinha, ou melhor, ainda tem o mestre Marrom, que já está há 30 anos por aqui. E esse lance de trocar de grupo de capoeira é bem delicado, precisa ter fundamento. Inclusive ele é um parceiro do meu antigo mestre, o Pinguim.
COOPERIFA
Cheguei no terceiro sarau. No primeiro estava o grupo de capoeira angola. Éramos sete pessoas nessa época. Os encontros aconteciam no Garajão, ali no Jardim Helena, no Taboão. Mas o Garajão era meio complicado. O circular (ônibus) passava chacoalhando o lugar todo. Parecia que tava passando dentro. Aí o sarau foi pra Piraporinha.
FUTEBOL
Corintiano, claro. Já fui mais besta (fanático). Hoje estou cabrerão com o meu. Corinthians, não só com ele mas com o futebol, né.
PRODUÇÃO LITERÁRIA
Produzo pra um monte de gente, gente que não conheço e pra algumas que eu conheço também. Mas depois descubro que nem sempre quem se interessa pela nossa produção são as pessoas que a gente pensou que iria desfrutar do que foi produzido.
Acho que o movimento não pode ser falso no sentido de que vai salvar alguma coisa. E isso é muito colocado. Acho que a gente pode, e deve, cada vez mais, elaborar reflexões sobre o que a gente está fazendo. Mas não da forma que a elite vem fazendo há muito tempo, não é essa reflexão quadrada, feita pra ninguém entender que a gente quer.
NOVA SAFRA
Eles (novos artistas e coletivos literários) não vão errar tanto quanto nós erramos. Acho isso massa, editoras independentes, saraus novos, pessoas pensando em fazer cursos. Acho ótimo. Maior respeito.
EDITORAS INDEPENDENTES
As editoras independentes tem o papel de formar, circular e manter a palavra escrita viva tão grande ou maior que as editoras graúdas. Estou falando de 40, 50 anos pra cá. Há cento e poucos anos essa importância era ainda maior, pois só existiam editoras gringas.
ALLAN DA ROSA * PRODUÇÃO AUTORAL
– Vão (poesia, 2005), Edições Toró
– Da Cabula (teatro, 2006), Edições Toró
– Zagaia (romance versado, infanto-juvenil, 2008), DCL Editora
– Morada (prosa e poesia, 2007)