janeiro de 2025

EU VI, NO MURO, UMA POESIA VESTIDA DE AZUL

Nabor Jr.

 

 

 

 

 

 

 

fotos MANDELACREW
reprodução @cranioartes

 

 

 

 

 

Com uma trajetória no graffiti iniciada em 1998, o artista paulistano Fábio de Oliveira Parnaíba (1982), o Cranio, tem uma caminhada viva e criativa na cena. A presença equilibrada e estratégica com que seus desenhos percorrem muros e empenas (paredes laterais de um edifício) na cidade de São Paulo, onde reside, contribui para a oxigenação de uma cultura que, desde o final da primeira década deste século, oscila bastante. Ora vibrante e imprevisível; outrora repetitiva e extenuada. Acredito que as veredas que pavimentam a história do graffiti, na sua compreensão artística, merecem uma anunciação em si e, em algum momento, espero reunir elementos para poder falar sobre esse tema. Mas voltando ao assunto, me parece que a repressiva fiscalização imposta pelas autoridades públicas, e o próprio “lugar comum”, enquanto novidade visual, que o graffiti passou a ocupar com o fim do hype que a linguagem viveu entre os anos 1980 e o início dos anos 2000, explicam um pouco esses altos e baixos. Ainda assim, são muitos os artistas brasileiros compromissados em manter o espírito da pintura de rua (nos seus aspectos de contracultura, denúncia e poesia) vivo. Cranio é um deles.

 

 

 

Azul Celeste: Empenas pintadas pelo artista em São Paulo (esq.) e Berlim (dir.)

 

 

 

Tendo o graffiti como expressão inauguradora, e central, da sua produção artística, Cranio conseguiu fazer com que suas obras se sobressaíssem diante da tumultuada paisagem urbana que atravessa a maioria das grandes cidades do eixo ocidental. Em comum a trajetória de outros artistas robustos do graffiti brasileiro, ele criou uma proposição visual que atua em simbiose ao espaço público urbano (ora privado) e sua vibração espontânea. Acolhendo ainda para o interior da sua construção poética uma função crítica, caraterística essa, aliás, comum aos precursores do graffiti (enquanto movimento cultural) que se apropriaram do spray para falar, agir, denunciar, existir…

 

 

 

Graffiti feito pelo artista Cranio

 

 

 

Tomando por conta a estética visual fundante do graffiti – e aqui destaco especialmente as letras wild style – Cranio tem um repertório criativo e domínio técnico que reverencia a antiga a escola. Basta observar a geometria audaciosa dos seus traços, as variações de luz e sombra, as ilusões de profundidade, a fluidez entre as letras e as bem sucedidas incursões pela tridimensionalidade.

 

 

 

 Wild Style: Cranio é um criativo do estilo

 

 

 

Observo em sua tipografia sofisticada e na personalidade de suas letras um destacado valor artístico, técnico e transgressor. Mas a marca da sua produção está mesmo nos cativantes seres azuis que criou. Majoritariamente de traços ameríndios (mas nem sempre), por vezes ostentando pinturas corporais de inspiração tribal ornamentando seus braços, maças do rosto sobressalentes e com uma faixa vermelha na altura dos olhos. São muitos dessas personagens presentes em muros e empenas da cidade de São Paulo (e outros tantos mundo afora, dada sua carreira internacional). De tamanhos variados e acompanhados de paisagens diversas, esses seres azuis sugerem uma interpretação poética bastante peculiar de temas da sociabilidade contemporânea, ao mesmo tempo, ora em harmonia, ora em conflito, parecem habitar um mundo utópico onde natureza e imaginação se fundem.

 

 

 

Empena pintada na cidade de São Paulo.

 

 

 

Nas ruas, com as imprevisibilidades e texturas da paisagem urbana, o trabalho, de fato, é impactante e sugestivo. Tanto por conta da monumentalidade das grandes pinturas e oferta de detalhes, como pelo encaixe anatômico à paisagem urbana que o circunda, a visualidade sedutora e ironia crítica.

 

 

 

Cranio ofertou uma função crítica a sua produção visual, muitas vezes materializadas por frases de impacto

 

 

 

Cranio se expressa também por meio de outros suportes. A construção do universo simbólico de alguns dos seus graffitis já indicam esse diálogo com as tradições estéticas de outras escolas artísticas anteriores ao graffiti como o conhecemos hoje. E essa produção, formada por médias e pequenas pinturas e esculturas, foi apresentada na exposição individual Azul. Realizada entre os dias 12 de dezembro de 2024, e 15 de janeiro de 2025, na unidade Jardins da galeria Luis Maluf, em São Paulo, com curadoria de Alexandre Araujo Bispo, Azul reuniu 27 obras inéditas do artista.

 

 

 

Visão panorâmica da Exposição Azul, na Luis Maluf Galeria, em São Paulo

 

 

 

Com uma ambientalização azul celeste forrando todas as paredes da galeria, somos convidados a embarcar neste universo pigmentado de calma e paz, contrapondo a ruidosa vida paulistana. Elementos do graffiti, do surrealismo, das artes naïf e fantástica, edificam um mundo onde não sabemos quando começa a realidade e onde termina a fantasia. “Vende-se a Amazônia”, “Stop war”, “I want to buy trees”, e outras frases que sublinham as tensões ambientais na floresta amazônica, e que acompanhavam algumas das pinturas e graffitis mais conhecidos de Cranio, seguem como tema de interesse do artista. Não como frases, mas representadas por queimadas, lagos, montanhas, que compõem a paisagem por onde seus seres azuis transitam. Em Azul, as personagens, com adornos indicativos de suas intenções simbólicas, sugerem também uma reflexão mais implícita sobre temas como consumo de luxo, apropriação cultural e impactos tecnológicos, manifestadas em símbolos que tencionam os princípios (des)humanos no capitalismo moderno.

 

 

 

Detalhe de obra sem título (2024), em exibida em Azul

 

 

 

“Muitos dos que se assentam nas cadeiras, assentam-se-ão no chão; e os que estão sentados no chão assentam-se-ão nas cadeiras”, é o provérbio bakongo que abre o texto de parede da exposição. Escrita pelo curador, essa mediação textual auxilia na fruição da visita ao sugerir algumas intenções conceituais do artista e por organizar o referenciais simbólicos presentes nas obras: “Criador-crítico atento as transformações sociais causadas pela circulação de mercadorias no capitalismo mundial, as personagens de Cranio estão as voltas com o consumo de coisas: roupas e acessórios de grifes, aparelhos celulares. O consumo aqui é um estilo de vida: ideias, imagens e comportamentos digitais, como os emojis, boca de selfie, corações de curtida, compõem esse universo de aparências”, destaca Bispo.

 

 

 

Exposição Azul

 

 

 

Azul é, para além do título da exposição e da já mencionada ambientalização azul celeste que adorna todas as paredes da galeria, o elemento que busca conduzir simbolicamente a mostra. Na prática, a sensação, estimulada pela iluminação baixa e direcionada às obras, e o ambiente pequeno, é de estarmos entrando em um ambiente meio espacializado, que acaba tornando a apreciação dos trabalhos um pouco cansativa, já que essa imersão não se materializa de fato. É certeira, contudo, a síntese proposta por Alexandre Bispo ao invocar a questão da “indigenização da modernidade” como um tema que atravessa profundamente a produção figurativa do artista: “Essa noção, criada pelo antropólogo norte-americano Marshall Sahlins, procura explicar que a modernidade não é um fenômeno unívoco. No contato cultural, as sociedades não ocidentais adaptam e reinterpretam coisas, pessoas, ideias ou mitos externos de acordo com seus próprios valores e pressupostos culturais. Em escala diferente, também as sociedades ocidentais interpretam produtos culturais indígenas, normalmente reduzindo sua complexidade a objetos de museu, objetos decorativos ou objetos perigoso”.

 

 

 

Escultura do artista localizada na entrada da exposição Azul

 

 

 

A escultura localizada logo na primeira sala da exposição é o ponto de destaque de Azul, pois tridimencionaliza uma obra que parece querer se deslocar da dimensionalidade que tradicionalmente habita. A escultura, como as texturas dos muros, é um suporte harmonioso a produção do artista.

 

 

 

Um dos trabalhos icônicos que o artista produziu a partir de um meme surgido em meados da pandemia de Covid-19

 

 

 

Ver as pinturas de Cranio no controlado ambiente de uma galeria é uma experiência dúbia. Por um lado, a oportunidade de observamos calmamente sua minuciosa construção artística e poética, e refletir sobre a amalgama de símbolos e elementos que emprega para discutir a sociabilidade contemporânea em diversas camadas. Por outro lado, a sensação é que as ruas continuam sendo o habitat onde a visualidade alegórica dos seus seres azuis se funde em harmonia ao aspecto crítico da sua obra. Andando por São Paulo é possível ver que os muros e empenas ainda são seu espaço de fruição, inspiração e conexão com o mundo, e onde ele azuleja o nosso dia. Que bom saber que continuaremos a ser surpreendidos por ele ao virarmos uma esquina qualquer.

 

 

 

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, jornalista e fotógrafo (utiliza o pseudônimo MANDELACREW). Atua na intersecção entre comunicação, artes e educação, com foco na produção cultural negra diaspórica.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.