setembro de 2021

PARAÍSOS ARTIFICIAIS E A CENA RAP NOS EUA

BiXop

 

 

 

 

 

ilustração ZIZA
fotos MANDELACREW

 

 

 

 

 

 

 

É muito comum as pessoas me perguntarem por que deixei os Estados Unidos para vir morar no Brasil. Ao longo dos anos, aprendi a colocar minha perspectiva de lado e apenas entender que as pessoas que me fazem tal questionamento provavelmente não entendem o sofrimento que passa parcela considerável dos afro-americanos que residem no país. Talvez essas pessoas se baseiem em filmes e outras referências do passado e acreditem que tudo está melhor agora. Podem realmente pensar, por exemplo, que nos Estados Unidos todos têm acesso às mesmas oportunidades, que tudo é um pouco mais fácil ou que há menos violência. Nenhuma dessas ideias representa minha realidade, mas é o que a maioria das pessoas acredita sobre a vida nos Estados Unidos. Só depois de anos morando no exterior – primeiro residi no Panamá, durante um ano, em 2011, para aprender espanhol e, desde 2016, moro em São Paulo – que comecei a entender a maneira como as informações sobre aquele lugar são consumidas pelas pessoas em outros países ao redor do mundo. Dito isso, outra pergunta comum que recebo é: porque eu deixaria o epicentro da cultura hip hop (a região metropolitana de Nova York) e me mudaria para a cidade de São Paulo na tentativa de seguir carreira musical no rap? Sim! Me mudei para o Brasil com a intenção de fazer parte da cena hip hop daqui. Mas também para escapar da minha vida monótona e mundana em Nova Jersey.

 

 

 

Financial District, Nova York 

 

 

Penso que  Nova York é uma cidade ótima! Ouso dizer que é minha cidade preferida no mundo quando não está frio. Mas é também uma cidade muito cara e sempre me pareceu impossível encontrar um lugar digno para morar a um preço razoável. A maioria das pessoas que conheço e que moram na cidade tem mais de um emprego, muitas aliás têm mais de dois. Isso apenas para sobreviver. Eu sou de Nova Jersey, que fica cerca de 45 minutos fora da cidade, então eu sempre dirigia para Nova York com meu parceiro  de som para cantar em sessões de microfones abertos, shows e festivais, pagando um pedágio de 15 dólares para entrar na cidade. Nova York está superlotada de artistas. É como um rodízio de talentos. As pessoas chegam à cidade com um sonho e depois de alguns anos podem ver lentamente a vida se esvaindo delas. Poucos encontrarão o verdadeiro sucesso, enquanto outra pequena parte pode encontrar uma maneira de transformar seus talentos em um trabalho, digamos, mais próximo aos bastidores da música. Mas a grande maioria dessas pessoas terá que trabalhar tanto para viver naquela cidade que terá pouco tempo para se dedicar à música. E quando encontrarem tempo, muitos perceberão que tentar seguir uma carreira musical é extremamente caro.

 

 

“(…) uma pergunta que sempre me fazem é: porque eu deixei o epicentro da cultura hip hop (a região metropolitana de Nova York) e me mudei para São Paulo na tentativa de seguir carreira musical no rap?”

Toda construção de carreira tem seus custos, muitas pessoas tem que ir a universidades ou escolas técnicas. E é justo que uma carreira nas artes venha com suas despesas também. Porém, com isso, um grande problema – pelo menos para mim – é que depois de todos os investimentos você realmente não sabe se isso fará diferença no final. Tempo de estúdio, produção de videoclipes, montagem de guarda-roupa, suporte para turnês, colocação em rádios, marketing, promoção online… esses são alguns dos custos mais óbvios para uma pessoa que tenta sobreviver da música. Muitos promotores de shows nos Estados Unidos encontraram maneiras criativas de ganhar dinheiro dos artistas (e não com os artistas). Antes de vir para o Brasil vi muitos rappers pagando para abrir um show de um artista mais famoso. Digamos, por exemplo, que o Wu-Tang Clan fosse fazer um show no Brooklyn, e eles teriam talvez 10 rappers de abertura. O que acontece hoje é que os artistas que cantam mais próximos da atração principal pagam muito dinheiro por essa colocação. No passado, seu talento faria com que você abrisse o show para esses artistas maiores e isso, consequentemente, lhe daria mais e mais oportunidades, porque as pessoas que iam para ver o show principal iriam ouvi-lo também. Agora seu talento não tem relação nenhuma com a sua capacidade de fazer uma música de qualidade e conseguir shows, já que as pessoas estão pagando por isso. Consequentemente a multidão parou de assistir aos artistas de abertura, e hoje passam o tempo conversando e fumando até o show principal começar.

 

De modo geral, essa mudança começou após uma infeliz revolução na música, alguns anos após a massificação das redes sociais, fazendo com que o talento musical do artista fosse menos importante que sua popularidade na Internet e do que o número de visualizações obtidas. Tudo isso é uma mudança muito frustrante na indústria da música. Já que o foco agora não é fazer shows e construir um evento ao vivo que seja diferente e que traga entretenimento, mas conseguir muitos seguidores e engajamento com aqueles que são contratados para fazer muitos shows no futuro. Essa mudança se tornou evidente quando passamos a ver com frequência pessoas aparecerem nas paradas de sucesso de Nova York afirmando serem artistas locais, mas que nunca tinham sido vistas no circuito. Ou seja, não haviam ido a nenhuma das sessões de microfones abertos ou feito as apresentações que artistas urbanos negros historicamente sempre tiveram que fazer para serem notados em Nova York. De onde vieram todos esses novos rappers? Como todos eles pularam o processo que, antes, todos tinham que fazer na cena?

 

 

 

Em 2016, BiXop viaralizou no Brasil – especialmente entre os fãs de rap – ao postar em sua conta no Youtube um videoclipe feito nos EUA onde canta em português a música O Trem, do grupo RZO.

 

 

 

A mudança na cultura musical e no consumo também mudou a forma como o rapper é visto nos Estados Unidos. No passado, ser rapper era legal, as pessoas gostavam da ideia. Hoje em dia, se eu fosse solteiro e conhecesse uma nova pessoa, não gostaria de dizer a ela que faço rap. A menos que ela fizesse parte da cultura musical, ela diria: “Oh, meu Deus! Outro”. Porque todo mundo é rapper hoje em dia! Há gente demais fazendo isso, a grande maioria não é boa e tampouco realmente estudou aqueles que vieram antes deles. Ser rapper hoje nos Estados Unidos é carregar o estigma que você vive em um mundo de sonhos, perseguindo algo que nunca vai acontecer. Isso significa que você é basicamente uma estatística, porque um jovem negro deveria tentar fazer algo com sua vida que seja mais construtivo e que realmente funcione, e não tentar fazer a mesma coisa que ele vê outras pessoas fazendo e que não funciona. Este não é o tipo de pessoa com quem você gostaria de começar uma família, a menos que ela concorde com o seu sonho.

 

Mas uma das principais razões pelas quais as pessoas torcem o nariz para os rappers é o conteúdo das músicas. Sou fã e amante de hip hop antes de ser um rapper, então reconheço que é muito difícil para muitas pessoas dentro do hip hop admitirem o quão prejudicial, agressivo e genocida o hip hop americano é e tem sido desde os anos 1990 para o crescimento e desenvolvimento de negros nos EUA. Normalmente quando eu digo isso perto de outros fãs de hip hop ou rappers, eles ficam irritados comigo (embora seja extremamente óbvio para qualquer pessoa que possa entender o tipo de inglês que usamos na música hip hop). As pessoas não querem admitir que essa característica se tornou parte da cultura jovem urbana negra contemporânea. Hoje, a maioria das pessoas sabe que o hip hop começou no início dos anos 1970 com jovens negros e latinos do Bronx se reunindo para promover festas positivas. Era uma forma de combater a tensão em uma sociedade cheia de gangues, drogas, crime, violência e pobreza. Naquela época o DJ era o foco principal, mas na década de 1980 o MC/rapper começou a crescer até se tornar o protagonista da cena. A cidade de Los Angeles, na Califórnia, deu origem, entretanto, a três dos elementos mais prejudiciais que afetaram seriamente nossa cultura: o crack, as gangues e o gangsta rap. Esses três elementos formam algo como a Santíssima Trindade. O crack foi introduzido propositalmente na comunidade negra de Los Angeles com o auxílio da CIA e de outras organizações como forma de destruir muitos dos avanços que os negros haviam feito nos 50 anos anteriores, e como forma de arrecadar dinheiro para a guerra civil da Nicarágua, uma vez que os EUA estavam apoiando o exército contra os revolucionários sandinistas para preservar o capitalismo na América Central. Essa nova droga rendeu muito dinheiro para gangues negras como a Bloods and Crips.  Essas gangues já eram rivais mas não tinha dinheiro ou armas para fazer guerra uns contra os outros como fazem hoje em dia, mas com o dinheiro do crack puderam comprar uma ampla variedade de armamentos que o exército estadunidense tinha.

 

 

 

East Village, Manhattan

 

 

 

O gangsta rap começou como forma de chocar uma sociedade que não tinha ideia da existência “deste EUA”. Isso significa que o gangsta rap foi comercializado para brancos com dinheiro, e o primeiro grupo popular do gênero, o NWA (Niggas Wit Attitude) foi financiado e administrado por Jerry Heller, um judeu branco. Devemos analisar que um homem branco estava controlando um grupo de artistas negros de música urbana chamado Niggas (uma palavra que não era usada abertamente pelos negros como um termo carinhoso, até que o gangsta rap se tornou popular). Niggas ou niggers era como os brancos que nos odiavam nos chamavam, assim como crioulo ou macaco aqui no Brasil. Então, vemos o primeiro efeito que o gangsta rap tem, não somos mais irmãos como no passado, nos tornamos ‘niggas’, porque, como disse uma vez um membro reformado da gangue Bone From Athens Park: “Temos que parar de nos ver como niggas, é muito fácil matar um nigga, assim como é fácil matar uma aranha ou um rato, ou em tempos de guerra quando você diz ‘mate um japonês’, ou ‘mate um gook’ (gook é um termo ofensivo usado por soldados americanos durante a guerra do Vietnã contra os norte-vietnamitas). Já o termo jap era usado para os japoneses durante a segunda guerra mundial. Mas roubar ou matar seu irmão a maioria das pessoas não gostaria de fazer, então temos que repensar essa palavra”. Ninguém fala: “sai e me dá seu carro irmão!” ou “foda-se irmão!”. Isso simplesmente não acontece. Quando estávamos lutando pelos direitos civis não usávamos a palavra nigga uns com os outros de forma positiva, isto foi um dos legados sombrios do hip hop.

 

 

“O rap brasileiro me atraiu porque é completamente diferente. Ainda mantém alguns dos elementos que a música rap dos anos 80 incorporou, falando sobre a sociedade, o governo, os problemas da comunidade”.

Músicas de rap icônicas como A Mensagem, de Grandmaster Flash e The Furious Five falavam sobre o gueto, a pobreza e o crime, todos de um tipo diferente de perspectiva. A música no início do hip hop era muito mais na “terceira pessoa”, e falavam sobre as coisas que afetavam a comunidade, assim como o hip hop aqui no Brasil. Mas depois que o período gangsta começou, ele se tornou a primeira pessoa: “Nigga! Vou atirar em você e em toda a sua família”. São tantas músicas incentivando a matar negros que até parece que os rappers odeiam literalmente os negros, há milhares de músicas onde o artista foca no assassinato de pessoas negras, mas nunca mencionam matar brancos. Isso é por acidente ou de propósito? Nos Estados Unidos hoje em dia você quase tem que ser agressivo, tem que ter um grupo de assassinos por perto, de preferência uma gangue. Você tem que ter ficha criminal, tem que ter sido visto vendendo drogas no seu bairro e não pode ter pai, esses são alguns dos elementos que podem culminar em fazer de você um rapper de sucesso nos Estados Unidos. Basta olhar para todos os maiores nomes em 2021 e podemos ver o que a indústria da música nos EUA glorifica. Veja também quantos rappers foram assassinados nos Estados Unidos em 2020, cerca de trinta rappers perderam suas vidas em violência armada no país no ano passado, grandes nomes como Mo3, Pop Smoke, King Von e, agora em 2021, nomes como KTS Dre, de Chicago, que foi alvejado 64 vezes enquanto estava sendo libertado da prisão. Indian Red Boy foi morto em Los Angeles em um show transmitido pelo Instagram. Lamentavelmente eu estava assistindo quando vi aquele homem perder a vida em seu carro implorando para seu amigo pedir ajuda. Gonzoe também foi assassinado recentemente. Os Estados Unidos é o lugar mais perigoso do mundo para ser um rapper, e só negros matando negros. Eu acho incrível que quando eu digo essas coisas para os brasileiros, muitos não acreditam em mim, mesmo que seja tão óbvio, porque muitos apenas veem o glamour e realmente não prestam atenção no que está sendo dito e como isso realmente afeta a cultura negra.

 

 

 

Bronx

 

 

 

As pessoas no Brasil reclamam do funk e das letras misóginas e ao mesmo tempo amam o hip hop americano, que é indiscutivelmente muito pior do que as coisas que estão sendo ditas aqui no Brasil. Eu vejo o hip hop sob uma luz mais crítica porque ele vem de uma mentalidade segregada. Então, termos como (bitches, hoes, thots, wenches) putas e vadias (vadias é na verdade um termo usado por escravistas para se referir a mulheres negras) são usados por rappers negros para falar sobre mulheres negras. O hip hop nos criou completamente, minha geração de homens negros cresceu ouvindo letras hipermisóginas e isso se tornou parte do nosso pensamento. Ser visto beijando mulheres na rua, de mãos dadas enquanto caminha, passando muito tempo com uma mulher e não com sua gangue. Todas essas coisas eu internalizei por causa do hip hop. Eu realmente gostaria de beijar uma mulher muitas vezes, mas ficaria preocupado em parecer fraco. Crescer como um homem negro no gueto ouvindo hip hop foi como a escola. Os rappers nos ensinaram como tratar as mulheres, nos ensinaram que você não deve se apaixonar, que é uma coisa fraca de se fazer. Há o verbo trick, um verbo criado na comunidade negra que significa gastar dinheiro com uma mulher. A única coisa que você deve oferecer a uma mulher é um ótimo sexo, e depois sair. Nunca passar a noite inteira com ela. Essas são as mensagens que quase todos os jovens negros ouvem nos Estados Unidos. Não há pesquisas ou evidências suficientes, mas é possível que essa mentalidade tenha influenciado os problemas astronômicos que homens e mulheres negras têm entre si nos Estados Unidos e o fato de que a maioria das famílias negras só tem uma mãe solteira em casa.

 

“As pessoas no Brasil reclamam do funk e das letras misóginas, mas ao mesmo tempo amam o hip hop americano, que é indiscutivelmente muito pior do que as coisas que estão sendo ditas aqui no Brasil”.

Eu poderia continuar falando por dias sobre os efeitos negativos do hip hop, mas devo insistir que não é minha intenção atacar a cena, esta é minha cultura e eu vivo e respiro isso. Eu só acho que devemos ser honestos com nós mesmos quando falamos sobre os aspectos negativos do rap e como ele nos afetou como pessoas nestes últimos 50 anos de existência, e não apenas falar sobre os aspectos positivos e excluir qualquer um que tente ser verdadeiro sobre os efeitos de crescer ouvindo hip hop dos Estados Unidos. O rap brasileiro me atraiu porque é completamente diferente. Ainda mantém alguns dos elementos que a música rap dos anos 80 incorporou, falando sobre a sociedade, o governo, os problemas da comunidade. Eu me apaixonei pelo fato de que mesmo em um país onde a violência é tão alta quanto nas comunidades afro-americanas, posso ligar uma música de hip hop e o rapper não está falando sobre todas as formas violentas que ele irá matar a mim e minha família atirando em uma parte dos meus órgãos corporais que eu nem sabia que existia. Fiquei feliz em ver que no hip hop aqui no Brasil não é certo xingar mulheres de certos nomes, ou fazer piada sobre estupro e abusos físicos como muitos rappers nos EUA têm feito. Para encerrar, o hip hop brasileiro me chamou  porque na época era uma sopro de ar fresco, mas eu vejo muita gente aqui copiando os aspectos negativos do hip hop estadunidense infelizmente, mas enquanto o rap no Brasil permanecer puro eu serei um fã. Espero que uma parte da cena hip hop daqui me aceite, mesmo eu sendo de um lugar distante.

 

 

 

Dumbo, Brooklyn

.
.
.

 

 

 

+ sobre BiXop

 

 

 

 

 

 

 

BiXop

BiXop nasceu e cresceu no estado de Nova Jersey em meio a violência e desigualdade que não é veiculada na mídia brasileira. O seu interesse pelo hip hop brasileiro resultou na aprendizagem da língua portuguesa, e a decisão de mudar para o Brasil e criar música multilíngue buscando novas opções de crescer como artista.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.