março de 2020

EMERGÊNCIA*

Eugenio Lima

 

 

 

 

 

fotos Fernando Eduardo / Cortesia Djonga / MANDELACREW

 

 

 

 

 

 

 

 

 

*Emergência: substantivo feminino
*1. ato ou efeito de emergir.
2. situação grave, perigosa, momento crítico ou fortuito.

 

 

 

 

 

“Então eu preparava pra seguir o meu caminho,
protegido por meus ancestrais.[…]
Mudaram as músicas, mudaram as roupas,
mas a juventude afro continua muito louca.
Falei do passado e é como se não fosse,
Por que eu vejo a mesma determinação no Hip-Hop
Black Power de hoje.[…]”

Sr. Tempo Bom, Thaíde & DJ Hum

 

 

O CHAMADO

“Meu pai Ogum mandou chamar
Eu vim, eu vim de lá
Meu pai ogum mandou chamar
Eu vim, eu vim de lá
Ele me ensinou coisas sobre amor
E que na paz só se chega com a guerra
E que toda bonança do trono do rei Xangô
Só vai conhecer quem for justo na Terra, ei”

De Lá, Djonga

 

O que emerge da música negra contemporânea brasileira? Como pensar na  narrativa da música negra produzida hoje no Brasil? Como abordar um tema tão vasto sem o reduzir a teorias gerais, que muitas vezes não passam de reflexos das narrativas dominantes ou dizem muito mais sobre quem escreve, do que sobre o assunto que está sendo escrito.

 

O assunto é amplo, existem muitas vertentes e muita coisa vem sendo produzida, criada, recriada nesses tempos urgentes. Às vezes tudo me soa como uma grande enxurrada de sons e narrativas, outras, vezes me atravessa como um furacão sonoro. Diante desse panorama, existe na imensa produção musical uma música negra contemporânea brasileira que subverte as narrativas musicais dominantes (estereótipos de classe, raça, gênero, centro-periferia, para ficar nos mais óbvios).

 

 

 

 

“Não precisa ser Amélia pra ser de verdade
Cê tem a liberdade pra ser quem você quiser
Seja preta, indígena, trans, nordestina
Não se nasce feminina, torna-se mulher”

Não Precisa Ser Amélia, Bia Ferreira

 

No meu entender não há como pensar esse assunto sem reconhecer que se trata de uma armadilha pois não há como dar conta do material.

 

As coisas que emergem podem estar sendo gestadas neste momento sem o meu conhecimento, por mais que eu tenha como um dos focos de pesquisa da minha vida a música da diáspora negra brasileira criada por pessoas negrxs. Muita coisa foge ao meu conhecimento, muitas cenas existem que desconheço ou que hoje não são consideradas relevantes, mas que amanhã podem ser determinantes para compreender nosso tempo. Cenas que se relacionam de maneira diversa com as várias formas de criar, produzir e publicar música.

 

“Quem tava lá
Quando os relíquias fincaram nossa bandeira?
Eu tava, você não, né?!
Deixa eu falar
Pezinho no chão, bebê, não fala besteira”

Respeita Minha História, MC Neguinho do Kaxeta

 

Nestes tempos urgentes, pensar, escutar e divulgar música negra é sobretudo pensar como ela se relaciona com o seu local de criação, quem cria, onde é criada, quem divulga, quem ouve, ou seja, é um processo complexo que relaciona o entorno com um mundo externo, que muitas vezes é o avesso de onde aquele som foi criado.

 

“A partir de agora considero tudo blues
O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues
O funk é blues, o soul é blues, eu sou Exu do Blues
Tudo que quando era preto era do demônio
E depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de blues
É isso, entenda
Jesus é blues
Falei mermo”

Bluesman, Baco Exu do Blues

 

 Djonga

 

 

Hoje os arquivos musicais circulam de uma maneira muito rápida,  realidades podem ser compartilhadas assim como modos de se vestir, gírias, sotaques. Porém, apesar de existir uma grande variedade de narrativas musicais negras, muitas delas ainda reforçam os estereótipos, sejam eles: raciais, de classe ou de gênero (só para citar, como eu já disse, os mais óbvios), ou seja, apesar de serem muito potentes elas reforçam os papéis cristalizados. Como todxs sabem, a internet não é uma plataforma horizontal e mesmo assim fenômenos podem acontecer.

 

“Respeita minha história
Antes de bater no peito, julgar
Baixa a bola, procure saber quem eu sou
Minha trajetória
Não foi da noite pro dia, da água pro vinho
Eu confesso que demorou
Eu sou do tempo que o asfalto era fora de cogitação aqui
A chuva caía e o futebol era na lama
Passageiro do tormento, visitei a fome, nunca desisti
1 por amor, 2 pelo funk, consequência: fama”

Respeita Minha História, MC Neguinho do Kaxeta

 

 

 

 

Sendo assim depois de muito refletir e quase desistir de escrever esse artigo, resolvi escrevê-lo como um jogo de pergunta e resposta. Resolvi escrevê-lo como uma mixtape; mixtape é uma compilação de músicas, adquiridas de fontes alternativas, gravadas tradicionalmente em cassete. As músicas podem ser dispostas de forma sequencial ou agrupadas por características comuns como ano de publicação, gênero e outros aspectos mais subjetivos. As primeiras e mais comuns mixtapes eram bootlegs, feitas na clandestinidade em formato estéreo 8; se vendiam nos chamados mercado das pulgas e em postos de gasolina desde os finais dos anos 1960 até o começo dos anos 1980. Com a chegada do som digital tudo mudou, a criação e distribuição das mixtapes sofreram enormes transformações, mas o termo mixtape ainda é comumente utilizado, mesmo para mixagens, em diferentes suportes.

 

A ideia aqui é criar/mixar uma cartografia musical descolonizadora, para a qual escolhi três amigues para consultar: Luz Ribeiro, João de Souza Neto e Roberta Estrela D’Alva.

 

 

A METODOLOGIA

“Habito as fronteiras da travessia do espelho
Point of no return
No confinamento, as paredes são
Minhas páginas de cimento, babylon burn
Jurei por Deus que ia acertar as contas
E aí lembrei que é Deus quem acerta as contas
Ele acerta no início, no meio, e no fim das contas
Quem somos nós nesse mundo complicado?
Danger zone, sou só mais um
Sente o som e o peso da pata do pirata
Sem garrafa de rum”

Carta Para Amy, Black Alien.

 

O método foi simples, e eu escolhi alguns artistas que no meu entender representam, de uma maneira própria, um discurso relevante dentro do mosaico da música negra contemporânea brasileira. Isso não quer dizer que esses  artistas sejam xs “porta-vozes” de todxs xs artistas, ou que elxs resumam tudo o que está acontecendo no país neste momento: escolhi-os a partir do lugar dos afetos, ou seja, a partir do que me atravessa, aquilo que acho necessário, e não necessariamente aquilo que gosto.

 

 

Black Alien

 

 

Reconheço nelxs vozes singulares, que carregam na sua trajetória outras vozes e que, portanto, acabam ligando diferentes gerações, na árdua tarefa de mudar através da música a narrativa dominante; escolhi-os por conta das batalhas para construir um outro olhar possível sobre ser negrxs  brasileirxs, no mundo que nos toca viver. Batalhas travadas na língua, na atitude, no som e na música. Algumas vozes partem de um lugar intimista, outras criam odes, outras ainda invocam os ancestrais para cantar juntxs e algumas teorizam sobre o mundo.

 

Depois disso enviei a lista para elxs (xs amigues),  que por sua vez me mandaram sugestões de nomes; alguns eu já conhecia outros não. Escutei os que não conhecia, juntei com as minhas sugestões e a partir disso, selecionei as músicas que eu acho mais relevantes de todxs e construí uma playlist*, que é o ponto de apoio do artigo que você está lendo.

 

 

SOBRE NARRATIVA OU APERTA O PLAY

“O que a gente quer disputar é a narrativa, é quem conta a história, como a conta a história e quais são as formas que utiliza pra contá-la”, foi assim que respondi, quando me perguntaram, o que de fato eu queria como artista diante da narrativa hegemônica.

Como eu disse anteriormente, o ato de escrever revela, não só o assunto, mas sobretudo quem escreve.

 

“Ninguém nos disse que seria fácil
Segurar a onda, dá na cara e continuar
Não deixe que tentem te colonizar
Te converter, te doutrinar
Te alienar
Eu quero voar
Escrever o meu enredo
Liberdade é não ter medo!!
Eu não vou entrar nessa jaula
Eu não nasci pra ser adestrada
Me deixa correr no espaço
Deixa eu exibir a minha pele pintada”

Descolonizada, Larissa Luz

 

“O que a gente quer disputar é a narrativa. É quem conta a história, como a conta a história e quais são as formas que utiliza pra contá-la”.

Descolonizar é urgente e necessário e para isto no meu entender a representação não basta. É preciso que a parcela da sociedade que ignora, que prefere não ver, que finge não estar envolvida, que se omite embora não concorde, seja convocada a se posicionar. Sua posição/omissão precisa ser confrontada de maneira pública.

O  racismo e suas consequências nefastas são um problema da sociedade brasileira, ou seja, nos envolve a todos e todas, negrxs e brancxs. É preciso criar um novo campo de debate, é preciso mudar a narrativa e, principalmente, é preciso mudar quem narra.

 

“Sou ascenção
Vim de baixo, debaixo da opressão
Complexa demais pra sua compreensão
Visão periférica, voz periférica
Coloco o ego desses boy na minha mão
Quero mais que KITS, era Nefertiti
Com a dor fiz feat, transformei em som
Nóiz não tamo quite, várias dívidas
400 anos cês vão me pagar
Não vão me pegar, não, não
Mas eu vou cobrar
Cada gota de sangue que nem Rubi
Nem vem de ignorância pra reprimir
Sou Zacimba não sou sua Bi
Tô no corre, sou Dandara sem Zumbi”

Rosas, Drik Barbosa

 

Drik Barbosa

 

 

Talvez seja justamente isso que foi imposto a essa geração de artistas: o receio de que a apropriação cultural imposta pelo sistema da branquitude conseguisse concretizar a eliminação da nossa história. A disputa pela narrativa não é abstrata, ela é densa e concreta. O que percebo nesse conjunto de artistas, é que mesmo de maneira profundamente heterogênea, respondem ao momento histórico com a afirmações poéticas e, portanto, políticas, diversas, mas quase todas relacionam sua presença à sua existência, seja na voz que articula a vida, seja contrariando o enredo previsto, seja pelos corpos insubmissos que dançam a vida, mas de qualquer forma é como se no sub grave profundo uma frase ecoasse: eu preciso estar vivx, eu estou vivx, e isto precisa ser ampliado para todxs.

 

Cantam porque percebem que sua existência está em perigo, que suas  vozes correm o risco de serem apagadas e, com este apagamento, apagam-se também suas vidas.

 

Ser real é mais que olhar o momento histórico.
É olhá-lo num instante de perigo.
Estar em relação é estar em risco.

 

É uma geração que articula a sua poética diante da necessidade imperativa de construir a vida e a negritude, ou, como disse Grada Kilomba: “Fazer  o que se quer é um privilégio, mas também uma conquista”.

 

Uma conquista que vai muito além do que postular lugar na cadeia produtiva, dentro da lógica altos cachês/protagonismo/palco principal=visibilidade; tudo isso é necessário e legítimo, porém ainda está  na lógica do capital. E não é a mesma coisa que estar em risco. Por mais que eu concorde com a primeira, uma coisa é o plano da lógica do capital e a outra é no campo da sobrevivência real. Antes de mais nada é preciso estar vivx, “vivão e vivendo”, e isto precisa ser ampliado para as próximas gerações, viver sendo quem se é, viver sendo quem se quer ser, tudo isso sem esquecer de todxs xs que se foram.

 

O resto é história. Matéria do tempo. Cruel, Sábio e Certeiro…

 

Linn da Quebrada e Jup do Bairro

 

 

“Mas não se esqueça
Levante a cabeça
Aconteça o que aconteça
O que aconteça: Aconteça!

Continue a travecar
Continue a navegar
Continue a atravessar
Continue a travecar
Continue a atravessar”

Serei A (part. Liniker), Linn da Quebrada

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eugenio Lima

EUGÊNIO LIMA é Dj, Ator-Mc, Pesquisador da cultura diásporica, Membro Fundador do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e da Frente 3 de Fevereiro e Diretor do Coletivo Legítima Defesa.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.