julho de 2012
MEMÓRIA AFRODESCENDENTE NO CORPO E NA ALMA
Renata Felinto
fotos Rafael Medeiros
Marco Gomes
Faz algum tempo que, talvez devido a lei 10639/03 que obriga o ensino de historia e cultura africana e afro-brasileira nas instituições de ensino, é possível observar a emergência de manifestações culturais de matriz africana, sejam as mais tradicionais como é o caso dos maracatus até as mais contemporâneas como os elementos que compõem a cultura hip hop. É o patrimônio que chamado de imaterial que vem servindo de apoio a educadores Brasil afora.
Para além dos muros escolares, as Manifestações culturais ou folguedos que se originaram a partir das ações e vontades de mulheres e homens escravizados, estão presentes não só na região Nordeste do país, como comumente costuma-se pensar quando se trata de cultura afro-brasileira. Pensamento este que não é em vão, tendo em vista que durante o Brasil Colônia e Império, os lugares que mais receberam africanos estão localizados nesta região do país.
Posteriormente, a partir do século 17, é que a região Sudeste passa a receber africanos escravizados no período aurífero mineiro, e, tempos depois, no século 18, nas fazendas produtoras de café dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Alias, são estes escravizados, que chegam à região Sudeste, muitos vindos da Bahia, que dão origem aos primeiros sambas compostos nas casas das famosas tias baianas que viviam nas zonas mais urbanizadas do Rio de Janeiro, como a casa da Tia Ciata, que era quituteira e em cuja residência os batuques viam a aurora surgindo. Casa onde se deu a luz ao samba carioca, filho do samba baiano. Porém, este é tema para outro texto.
São, então, estas migrações que garantem aos paulistanos de hoje a possibilidade de conhecer, vivenciar e dançar um maracatu recifense, uma congada mineira ou um bumba meu boi maranhense. Pois é… Desde os amargos tempos dos grilhões que os corpos levados de um lugar para outros, por vontade própria ou de outrem, até podem mudar geograficamente, todavia, internamente ou espiritualmente, este processo de mudança é quase impossível. O que se constitui dentro de um corpo como memória familiar, afetiva, social, coletiva não se pode ludibriar. E se houver esta tentativa, o corpo, em algum momento, poderá pedir , todos sabem…
Raquel Trindade, Benedito Pereira de Castro e Tião Carvalho, bem sabem disso…
RAQUEL TRINDADE MARACATEANDO EM EMBU DAS ARTES
Damas primeiro, vamos à historia de Raquel Trindade Souza. Em 1950, seu pai o poeta Solano Trindade (1908 – 1974), juntamente com a primeira de suas três esposas, Maria Margarida da Trindade, e com o sociólogo Edison Carneiro (1912 – 1972), fundou, no Rio de Janeiro, o Teatro Popular Brasileiro com o intuito de propagar a cultura popular.
Em 1961, a Família Trindade é convidada pelo escultor Assis do Embu, a mudar-se do Rio para Embu das Artes, em São Paulo, com o intuito de movimentar a cena cultural da região. Para quem não sabe, a internacionalmente conhecida feira de artes e artesanato de Embu das Artes foi fundada por Mestre Assis juntamente com outros artistas. O TPB contava com 30 artistas em seu elenco. Todos viviam sob o teto de Mestre Assis, organizando apresentações de danças populares de todo o Brasil e realizando festanças que duravam dias. É neste contexto que foi criada Raquel Trindade, nascida em 1936, em Recife, Pernambuco. Muitos se recordam mais do papel de seu pai quando se trata de sua biografia, entretanto, sua mãe, Margarida, pouco lembrada nesse processo, é de crucial importância para sua formação, legou à ela o seu conhecimento em danças populares. Ainda, que ela fosse presbiteriana, o sincretismo cultural falou mais alto.
Raquel é formada em Terapia Ocupacional, mas também atua como pintora, pesquisadora de cultura afro-brasileira, educadora, figurinista e coreógrafa. Em sua atividade como pintora, já expôs em vários lugares ao redor do mundo e recebeu prêmios e homenagens. Como promotora da cultura afro-brasileira, mesmo não tendo formação universitária, em 1988, foi convidada para lecionar cultura popular (ate então chamada de folclore), sincretismo religioso e cultura negra na renomada UNICAMP.
“Não é um trabalho só de carnaval, é da vida inteira”.
Na cidade de Embu das Artes se encontra localizado o Teatro Popular Solano Trindade, criado em 1975, apos o falecimento de Solano Trindade. Construído pela Prefeitura da Cidade e dirigido pelos herdeiros do saudoso poeta, neste espaço organizam, sob a direção dessa incansável senhora, festas e eventos que enfatizam a cultura popular brasileira de matriz africana: coco, samba, maracatu, dentre outros ritmos e danças que podem ser conhecidos, aprendidos e dançados neste espaço. Como já disse Raquel: “É a coisa de preservar e passar o que a gente sabe às pessoas. Não é um trabalho só de carnaval, é da vida inteira”. Assim, aos sábados o TPST promove cursos de capoeira em parceria com o grupo do Mestre Marrom (Irmãos Guerreiros), de Taboão da Serra, cidade vizinha à Embu das Artes, e, no último sábado de cada mês ocorrem as rodas de samba, o “Solano Samba”, produzidas por Elis Sibere Montes. Aos domingos acontecem os ensaios do Grupo de Maracatu Nação Cambinda, coreografado e organizado por Raquel. O Nação Cambinda conta, atualmente, com 35 integrantes dentre dançarinos e músicos. Este grupo enfatiza o maracatu de baque virado, originado na zona urbana de Recife e organizado em forma de cortejo, ou seja, com rei e rainha, dama do paço, dama das flores, baianas, porta-estandarte, porta-paio, dentre outros personagens que compõem esta “dança-andança”. Em oposição ao maracatu de baque virado, existe o maracatu rural, aquele cujo genial Chico Science (1966 – 1997) destacou o personagem guerreiro de lança, com sua brilhante cabeleira colorida e óculos escuros.
Para os que não tiverem a oportunidade de presenciar uma das apresentações do Nação Cambinda em unidades do SESC ou em eventos como a Virada Cultural, é uma boa idéia se deslocar até a charmosa cidade colonial de Embu das Artes, conhecer a feira de artes, seu casário que possui entre as construções o Museu de Arte Sacra dos Jesuítas e, por fim, as essenciais ações da Família Trindade que enriquecem inegavelmente a cultura local e paulistana.
MESTRE DITO, O CONGADEIRO DE COTIA
Próximo de Embu das Artes, em Cotia, encontra-se uma família muito importante para a cultura popular paulista, a Pereira de Castro. Senhor Benedito ou Mestre Dito, como é conhecido entre os que fazem e participam de congadas, os congadeiros, também nasceu em 1936, na cidade de São Luis do Paraitinga. Seu pai, João Antonio Pereira de Castro era cantador e mestre de roda de samba. Ele diz que suas raízes são originalmente africanas, que sua avó era do Congo. Ainda muito criança teve que deixar os estudos para trabalhar na região do Vale do Paraíba, onde plantava arroz.
No carnaval de 1947, um irmão mais velho foi buscá-lo para viver com ele. O irmão já tinha um grupo pequeno de “Moçambique”, mas queria montar um grupo familiar. Os moçambiques são grupos de música e dança surgidos a partir das congadas nos quais os dançarinos usam bastões de madeira para marcar o ritmo nos combates encenados. “Se formou um grupo com mais ou menos 12 pessoas, tocando uma caixinha, enquanto alguns batiam os pauzinhos”, diz ele.
Tranferiu-se para Cotia em 1951, e até hoje preserva a tradição de seus antepassados e impôs-se uma missão em sua vida: “continuar a Congada, realizar o 13 de maio em Cotia e ir para São Luiz do Paraitinga nas Festas do Divino”. Em 1952, chamei meu pai e falei: “Pai, vamos fazer um moçambique”. “Eu sempre que fui o compositor, as letras são todas minhas”, disse.
Pai de cinco moças muito simpáticas e, felizmente, envolvidas com as festas organizadas pela família, Mestre Dito conta que o grupo sofreu e ainda sofre muitas situações de preconceito por parte dos habitantes locais que não compreendem a importância da existência de uma congada em Cotia. “Dizem ser festa de negro! E nós enfatizamos que é sim uma ‘festa de nego’ ”. Aí reside uma problemática muito interessante, quando conveniente, estas festas são tratadas como expressões da cultura popular brasileira, quando não, especialmente por pessoas que não realizam o mínimo esforço para se informar acerca da historia de seu próprio país, são tratadas como “festa de nego”. Só para não perder a raiz… Por sua vez, universitários e pesquisadores de muitos locais recorrem ao Mestre Dito para saber mais sobre essa expressão nascida da devoção à Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Ifigênia. Devem correr, pois Mestre Dito possui lembranças sobre sua infância que parece ter vivido ontem. Lembra de levar os alimento à boca com as mãos pela falta de talheres e de andar descalços na falta de sapatos, assim como ocorria durante o período da escravidão.
“Dizem ser festa de negro! E nós enfatizamos que é sim uma ‘festa de nego’”.
A Festa da Congada está em Cotia desde meados do século 20 e faz parte do calendário da região, comemorado no dia 13 de Maio. Grupos de congadeiros de vários lugares do Brasil participam da Congada do Mestre Dito, como os que vem de Lorena, Taubaté, Pindamonhangaba e Mogi das Cruzes, e seguem em cortejo até a Vila São Joaquim, onde vive a família de Mestre Dito, ao som de fogos de artifício, tambores, sanfonas, violões e cantorias.
Ainda que para os que conhecem um poucos mais de história do Brasil a figura da Princesa Izabel tenha um papel controverso no que se refere à abolição da escravidão, para os congadeiros, ela é sim uma personagem a ser reverenciada. Nesta mesma data, da Câmara de Cotia, saem os congadeiros com o busto da Princesa Isabel, louvada como a figura libertadora dos escravos. E ainda há um lado solidário da festança, bem aos moldes do bom cristão: “Como na maioria das festas populares, Mestre Dito mantém a tradição de solidariedade que remonta historicamente as festas pagãs na Idade Média, durante o 13 de maio em Cotia. Todos são convidados a fazerem doações aos mais necessitados, pois, como num verdadeiro grupo de cultura popular, tudo que se passa na vida desta comunidade é pensado no coletivo. Mestre Dito possui hoje um grupo com dezenas de seguidores que cantam, rezam e dançam com uma felicidade indescritível, com certeza uma das maiores lições deste Mestre”, segundo contam os pesquisadores João Rafael Cursino e Galvão Frade.
TIÃO CARVALHO: DEIXA O BOI DANÇAR NO MORRO DO QUEROSENE!
Do Maranhão para o Morro do Querosene em São Paulo. Há mais de 20 anos que José Antonio Pires de Carvalho ou Tião Carvalho, nascido em 1955, organiza a Festas do Boi nesta parte do bairro do Butantã, juntamente ,com o Grupo Cupuaçu, criado pelo próprio.
Assim como nas congadas do Mestre Dito, grupos de cultura popular de muitos outros lugares se reúnem neste espaço durante o nascimento, batizado e morte do boi. Estes três momentos nos quais a festa é realizada estão divididos ao longo do ano, acompanhando o calendário das festas católicas, como ocorre com o Maracatu no Carnaval. O nascimento do boi ocorre no sábado de Aleluia, ou seja, um dia antes da comemoração da Páscoa. O batizado é feito no mês de junho acompanhando as festas juninas e o dia de São João Batista. Por fim, o boi morre no fim do ano, próximo ao dia 2 de novembro, Dia dos Finados.
Interessante notar que muitas populações comemoram o boi de maneiras variadas. Segundo o pesquisador Raul Lody, no “Atlas Afro-Brasileiro de Cultura Popular”: “O boi é personagem principal que traz formas, cores e historias além-Atlântico, da costa, do continente africano. Incluído em cortejos, esculpido em madeira, e ‘vestido’ com tecidos, metais e outros materiais, o animal que significa força no trabalho agrícola recupera da memória temas mitológicos, unindo valores da terra e do universo masculino”.
Diferentemente das congadas do Mestre Dito e dos maracatus de Raquel Trindade, talvez pelo fato da distância, a festa do Boi de Tião Carvalho é muito mais freqüentada por universitários e pesquisadores do que os demais folguedos citados. Por vezes, alguns universitários e pesquisadores ultrapassam o limite entre objeto e investigador e passam a incorporar-se aos grupos. Em outros casos, talvez, algumas escolhas profissionais, estejam justamente atreladas ao encanto provocado pela convivência com o ambiente da festa. A antropóloga Carolzinha Teixeira, 29 anos de idade e graduada pela USP, diz que: “Eu sou do bairro, e participo da festa desde que nasci (antes de assumir a responsa de ser integrante). O Cupuaçu é um grupo extremamente heterogêneo. Acho que já surge assim, da união de um povo vindo do Maranhão com integrantes do Teatro Ventoforte. Mas convivem muitas pessoas de formações diversas, acho que a maioria não chega a ser de universitários… não sei se estou certa. São diversos caminhos que levam as pessoas ao grupo. Hoje, já temos uma terceira geração nascendo, e sempre alguém leva outro alguém. Tem alguns maranhenses que migraram para São Paulo e ficam sabendo, e outros chegam pela Festa no Morro, se informam e aparecem nos ensaios (esses, em sua maioria, são os universitários – taí!)”.
Assim como ocorreu com Carolzinha, o organizador da Festa do Boi, Tião Carvalho, também se encantou pela cultura popular ainda criança, por influência de seu pai. Ainda pequeno, presenciou apresentações da rica cultura maranhense como o Bumba-Meu-Boi e o Tambor de Crioula. Este legado esta incorporado às atividades que desenvolve como cantor, compositor, dançarino, ator e pesquisador. Nascido em 1955, na cidade de Cururupu, no Maranhão, chegou em São Paulo em 1985. Entretanto, a sua carreira já havia se iniciado por volta dos anos de 1970, lá mesmo no Maranhão onde participou de peças teatrais e de espetáculos musicais, como do grupo musical “Rabo de Vaca”, que tinha ainda as participações de Zezé Alves, Josias Sobrinho, Beto Pereira e Mauro Travincas. Viveu e desenvolveu trabalhos no Rio de Janeiro, realizou sua primeira turnê no exterior até aportar por estas terras, passando a viver no Morro do Querosene, que com o passar dos anos se transformou em um reduto de artistas que utilizam-se de diversas linguagens artísticas.
O talentoso Tião Carvalho já ministrou cursos na ECA/ USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), já realizou composições que foram gravadas por grandes nomes de nossa musica como pela saudosa Cássia Eller, já chegou a finais de importantes festivais e seleções musicais como o Rumos Itaú Cultural… Ufa! O currículo é extenso! Impossível saber se dentre tantas realizações o coroamento destes grandes esforços seja a oportunidade de se apresentar com sua banda no ano do Brasil na França, em 2005, apresentando um amplo leque de ritmos brasileiros ou se é mesmo fato da Festa do Boi estar cada vez mais (re)conhecida e cheia de gente querendo aprender estas danças, um pouquinho da cultura popular maranhense e conhecer gente nova.
Quem quiser tomar contato com este legado fora do período das festas pode participar de oficinas e encontros que ocorrem aos sábados e domingos, todos realizados pelo Grupo Cupuaçu.
NÃO PERCAMOS A RAIZ
Como muitas das festas que ocorrem em nosso país e que foram iniciadas nas senzalas ou frutificaram num contexto de humilhações e privações, todos os folguedos referenciados se popularizaram e são conhecidos como “festas populares”. Porem, é imprescindível que não se percam a origens das mesmas, que elas não se diluam na tentativa de apagamento das origens africanas ou afrodescendentes de diversas expressões culturais e artísticas de nosso país. A estratégia de nomeá-las como “populares” somente, deve ser observada criticamente, pois também é uma forma de apoderamento das mesmas pelas elites brasileiras e, ao mesmo tempo em que são aceitas, podem sim serem “embranquecidas”.
“Não se deve esquecer que o samba, outrora “festa de nego”, como bem lembrou Mestre Dito, era criminalizado assim como a capoeira e marginalizado como a feijoada. Lembremos, sempre, de onde vêm este símbolos de nacionalidade”.
Não se deve permitir que a ingenuidade confira a estas festas em suas configurações contemporâneas o rótulo ultrapassado da “democracia racial”, do país mestiço e sem preconceitos que ainda se quer vender como imagem predominante na sociedade brasileira. Não se deve esquecer que o samba, outrora “festa de nego”, como bem lembrou Mestre Dito, era criminalizado assim como a capoeira e marginalizado como a feijoada. Lembremos, sempre, de onde vêm este símbolos de nacionalidade.
O antropólogo inglês Peter Fry, que chegou ao Brasil na década de 1970 e se naturalizou brasileiro, logo percebeu como funciona este mecanismo da nossa sociedade. Fervoroso estudioso de sexualidade e da cultura tupiniquim, especialmente a de matriz africana, em seu célebre texto “Feijoada e Soul Food“ (1976), no qual analisa a incorporação, pelas elites brasileiras, de criações culturais do segmento “dominado” da população como símbolos de nacionalidade, principalmente, em oposição à “exclusão” que, de modo geral, às criações culturais dos negros norte-americanos sofrem por parte dos brancos abastados de lá. Sobre essa assimilação, que alguns acreditam ser manifestação da nossa “democracia racial”, Peter Fry, diz o seguinte: “Quando se convertem símbolos de ‘fronteiras’ étnicas em símbolos que afirmam os limites da nacionalidade, converte-se o que era originalmente perigoso em algo ‘limpo’, ‘seguro’ e ‘domesticado’ ”. Este trecho é somente para pensar, para aguçar o sujeito critico que existe em cada um de nós.
Entretanto, para além destas observações menos comemorativas em relação à popularização de expressões afrodescendentes e, para alem do período de festas juninas e julinas, as festas ocorrem o ano todo, porque o corpo pede. Podem até partir de alguma religião, mas o que importa é que precisamos sim desta reconexão ou catarse coletiva, comum, mesmo com todas as idiossincrasias.